terça-feira, novembro 25, 2014

Matança da Páscoa

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Todos os dias passo junto à Igreja de São Domingos, em Lisboa, cenário de um episódio triste da história dos portugueses, que como muitos episódios infelizes gostamos de esconder longe da nossa memória. Este episódio ocorrido no ano de 1506 começou a 19 de Abril e resultou no massacre de duas a quatro mil pessoas, homens mulheres e crianças assassinado por hordas de populaça que foi estimulada ao ódio e à condenação cega.
  
Tudo começou na Igreja de São Domingos, um crente julgou ter visto a imagem de um santo projectada num altar, mas um cristão novo lembrou-se de esclarecer que se tratava de um mero reflexo de luz. Atiçada por um frade dominicano a populaça linchou logo ali o cristão novo. Acusados de todos os males que Lisboa sofria, a seca a fome a peste. Os cristão novos da capital foram massacrados durante três dias. 
  
Mais recentemente, já no princípio deste século, Lisboa assistiu a mais uma manifestação de estupidez colectiva promovida pelo Caso Casa Pia. Tal como no passado agora também houve um conhecido ”frade”, um tal Namora, que convocava as hordas de puros para manifestações no terreiro do Paço. Os jornais e televisões eram os mesmos de agora, os jornalistas receptores das fugas de informação da Justiça eram os do costume e o processo foi em tudo semelhante ao que sucedeu
  
As formas de condenação rápida são as mesmas, a populaça é mobilizada pelo passa palavra ou por jornalistas, a condenação prévia e preventiva é promovida por frades ou por magistrados, o mecanismo é o mesmo, da mesma forma que depois se esquece para evitar a vergonha colectiva. Os judeus massacrados foram esquecidos até 2008 e do Processo Casa Pia ninguém quer falar. Ninguém gosta de lembrar os massacrados, os julgados em nome da fúria colectiva, todos desejam que apodreçam na cela de uma prisão ou na falta de memória colectiva.

Os rituais da nossa justiça, a sua utilização para resolver os nossos ódios, sejam religiosos ou políticos, os golpes baixos com que atacamos os adversários, a tentação do massacre que ilude as culpas pessoais atrás de hordas de populaça, nada disso mudou substancialmente. Só que os jornalistas são mais eficazes do que o passa palavra e os comentadores televisivos parecem mais credíveis do que o frade dominicano.
  
As hordas da populaça, os frades dominicanos, os jornalistas do passa palavra, os estrangeiros que passam por Lisboa, as misérias nacionais para as quais é necessário, tudo isso está de volta e já há culpados, condenados preventivamente. As primeiras páginas, os comentários televisivos, os emails apelam mais uma vez à matança colectiva. Como sempre sucedeu na nossa história a justiça impõe-se pelo medo, apoia-se na horda da populaça ignorante, recorre à manipulação de opiniões e de sentimentos.
  
Dizem que estas “matanças” são boas, tal como as podas revigoram as árvores a “matança” revigora o regime. Esperemos que daqui a uns tempos não andemos a esconder novamente as vergonhas do passado, a deixar condenados esquecidos a apodrecer nas celas da nossa memória colectiva. Esperemos que aqueles que hoje dizem que a democracia si renovada, não venham daqui a uns tempos dizer que ainda bem que tudo sucedeu porque isso permitiu renovar a justiça.